JOSÉ DA CRUZ SANTOS
Tenho pelo Senhor Nuno Canavez, proprietário da Livraria Académica,
transmontano, mas portuense pelo coração, uma admiração com mais de
cinquenta anos. Profissional sabedor e culto, que se tornou num grande
livreiro antiquário, pessoa que usa de uma admirável franqueza e sentido
de humor nas suas relações com os clientes, sempre me sensibilizaram e
tantas vezes comoveram os seus gestos de generosidade a que assisti ou de
que tenho sido beneficiário, desde os dias muito jovens em que lhe
aparecia a comprar ou a vender livros, consoante as possibilidades e as
necessidades. (Quando digo vender, era com uma tristeza que me preparava
para compreender a que deveria sentir Camilo quando vendeu a sua
biblioteca, salvo erro por duas vezes.)
Desde esse tempo em que a paixão dos livros era já para mim motivo de
grandes alegrias e de grandes dificuldades, e em que estas haveriam de
prenunciar outras muito maiores, sempre fui atendido com a mesma gentileza
e compreensão. Foi-se tecendo assim, com esses fios, a amizade que sinto
por Nuno Canavez, tanto mais que, como gosto de dizer e já dei como título
a uma edição minha, a amizade é o lugar da terra onde mais gosto de viver.
Quantas vezes agradeci o preço generoso de uma preciosidade, por exemplo
de Garrett, que só por equívoco pôde ter nascido, já não diria no Porto,
mas neste país…; ou o ter-se lembrado do meu interesse pelas Histórias
Castelhanas, de Domingos Monteiro; ou a indicação da bibliografia de
Eugénio Andrea da Cunha e Freitas, de quem tenho muitas e muitas saudades,
e de que necessitava para um número do Tripeiro; ou o empréstimo daquele
livro de Maria Judite de Carvalho; ou a primeira edição da Pátria, de
Guerra Junqueiro, que eu queria oferecer, encadernada, com o bom gosto que
costuma pôr na escolha das encadernações; ou a primeira edição de Terras
do Demo, de Aquilino, que, com Camilo, é talvez um dos deuses maiores da
minha mitologia doméstica; ou as traduções francesas de Rilke, o genial
poeta das Elegias de Duíno; e, acima de todas, as lembranças camilianas –
O Cancioneiro Alegre, Maria da Fonte, O Esqueleto… Ninguém sabe melhor o
que os livros representam para mim quando se trata de um autor do qual sou
um fanático fundamentalista. Tão fanático que, como acontecia ao admirável
Teixeira-Gomes, até me apetece desancar quem diz mal de Camilo.
Toda esta gentileza acentua o desconforto da minha situação: se não lhe
bato à porta com os meus pedidos de leitor insofrido, arrisco-me a não
conseguir os livros que procuro; se bato, e os tem, são muitas as vezes em
que não mos deixa pagar. Procuro então enviar-lhe os frutos da minha
lavoura artesanal (que começou em 1963, na Portugália Editora, nessa
Lisboa de que não me canso de gostar) e que habitualmente merecem a sua
benevolência. Não sei por quanto tempo ainda resistirá esta lavoura em
tempo de best-sellers assoprados nas televisões, em que o lixo editorial
atinge proporções que quase nos desgosta de saber ler, mas que há-de fazer
um sujeito que nasceu com o século vinte? Cada um é do seu tempo, e mal
vai se começa a iludir-se pintando o cabelo e usando capachinho!
Entretanto, continuo a editar, por inteiro do lado do coração, apaixonado
pelos livros, apesar de o fabuloso Stevenson ter dito que os livros são um
mau substituto para a vida, ele que tanto os amava e que até tinha o
Visconde de Bragelonne como livro de cabeceira. Em certos casos, posso
dizer que houve uma razão não explícita para o prazer que certas edições
me deram: o saber que iria ter a alegria de também lhas oferecer. Como
editor, ainda desejava poder reivindicar a honra de publicar as suas
memórias. Seria realmente uma maravilha que Nuno Canavez as escrevesse,
pois tem tanta coisa para contar, e com o sal do espírito que todos lhe
conhecemos!
Gostaria pudesse aceitar que partilhe as suas alegrias deste momento, pois
já alguém considerava, e eu concordo, que se é bom sentirmos solidariedade
nos momentos difíceis da vida, não é menos importante e talvez seja mais
raro saber que os nossos amigos se alegram com os nossos êxitos. E eu,
senhor Nuno Canavez, peço licença para me incluir em ambas as categorias,
e em nome disso trago-lhe aqui uma amizade com a qual nada tem podido a
ferrugem do tempo.
José da Cruz Santos

PREFÁCIO
Por GERMANO SILVA
O Nuno
A ideia de fazer esta "partida" ao Nuno Canavez veio de um amigo comum, o
editor José Domingos da Cruz Santos, cidadão de convicções firmes e homem
de Cultura que quis, desta maneira, associar-se às celebrações dos 95 anos
da Livraria Académica e ao 73.° aniversário do Nuno - esse rijo
transmontano do Vale de Juncal, em Abambres, Mirandela, que, em 1948,
viajou para o Porto com apenas 13 anos de idade, à procura de trabalho
numa drogaria e que acabou por se deixar prender de amores pelos livros.
A mim, o Cruz Santos graduou-me na figura do louvador. E é essa missão que
vou tentar cumprir.
A quem porventura não saiba, e até como leal prevenção para eventuais
deslizes de parcialidade, devo dizer que conheço o Nuno Canavez há mais de
meio século, desde os idos de 50, quando os acasos da vida nos juntaram
nos bancos da antiga Escola Comercial de Oliveira Martins a funcionar, por
esse tempo, na Rua do Sol. De comum, entre nós, além do amor pelos livros,
há a circunstância de termos deixado, muito novos ainda, o terrunho natal,
para rumarmos ao Porto à procura "de uma vida melhor".
Na cidade grande, que fraternalmente nos acolheu, tivemos idêntico
princípio de vida: ambos fomos marçanos - eu num retroseiro da Rua de
Santa Catarina, de que ainda hoje guardo as mais gratas recordações por
ter sido a minha primeira "Universidade do Trabalho"; o Nuno na Livraria
Académica, de que viria a ser proprietário e que fora fundada, em 1912,
pelo livreiro Joaquim Guedes da Silva de quem o Nuno costuma dizer que foi
"... meu venerando e nunca esquecido mestre".
Fosse por aquela coincidência ou pela afinidade das nossas origens rurais
(eu tenho raízes nas úberes terras de Penafiel), a verdade é que pela vida
fora fomos cimentando uma amizade com tal solidez que, hoje em dia, entre
os destroços morais do nosso tempo, bem pode ser considerada como uma
saudável e rara sobrevivência.
No Porto, o Nuno subiu a pulso todos os patamares da vida. Transmontano
até à medula, nunca virou a cara à luta e mesmo perante a adversidade
manteve sempre aquele espírito decidido, vivo e leal que caracteriza as
gentes de Trás-os-Montes.
Por isso, foi um ganhador.
Cumpria-se dessa forma um vaticínio de seu pai, o honrado cidadão Eduardo
Nascimento Canavez que um dia profetizara que "só na cidade os filhos
poderiam subir na vida”.
Os mais assíduos frequentadores da "Académica" habituaram-se a admirar no
Nuno, em primeiro lugar, a rijeza das suas convicções, a propensão para
evitar os becos e as azinhagas onde se fazem negaças à amizade humana; e
depois a sua franqueza e a sua indefectível fidelidade aos amigos.
"É amigo dos seus amigos mas também um chato do diabo quando não gosta de
alguém, ou de alguma coisa" - escreveu um dia o jornalista e escritor
Viale Moutinho. E o Nuno, com a frontalidade que se lhe reconhece, diz: "é
verdade".
Depois da Família, que é o centro de toda a sua vida afectiva, o segundo
grande amor do Nuno é a "Académica" - essa Meca do livro, autêntico
cenáculo cultural portuense, lugar de intercâmbio de ideias, a única
livraria da cidade onde se reúne, todas as semanas, sempre aos sábados,
pela manhã, a também única tertúlia cultural que ainda mexe no Porto.
É nessas inesquecíveis manhãs de sábado que se descobre a faceta mais
humanista do Nuno quando o mercador de livros cede o lugar ao contador de
histórias muitas delas urdidas das memórias da infância, das incursões
venatórías ou da experiência adquirida atrás do balcão no longo exercício
da actividade de livreiro.
Outra curiosa faceta de Nuno Canavez é a de mecenas do concelho de
Mírandela.
Na Biblioteca Sarmento Pimentel, daquela cidade, criou um notável fundo
documental sobre a temática transmontana e alto-duriense para onde já
enviou largos milhares de títulos.
Obras, portanto, que deixou de comercializar e que muito provavelmente lhe
podiam ter rendido pingues lucros.
A sua dedicação à região de onde é natural também se pode avaliar por uma
interessante e útil iniciativa que ele próprio tomou: a da realização de
um aturado trabalho de pesquisa que culminou, até esta altura, com a
publicação de quatro volumes de "Subsídios para uma Bibliografia de
Trás-os-Montes e Alto Douro", com centenas de entradas em cada um desses
livros.
Nuno Canavez foi o primeiro livreiro-alfarrabista a fazer catálogos.
Elaborou mais de duzentos e promoveu a realização de exposições temáticas
de livros, revistas e manuscritos como, por exemplo, sobre as Guerras
Liberais, Camões, o 25 de Abril, o Brasil, os Descobrimentos, o Jornalismo
Portuense, Camilo Castelo Branco, a Queda da Monarquia, a Implantação da
República, para citar apenas algumas.
Foi com todos estes ingredientes que a Livraria Académica e o seu
proprietário granjearam o prestígio de que merecidamente gozam no país e
no estrangeiro, com evidentes honras para a cidade do Porto.
Um prestígio já devidamente reconhecido a nível nacional quando o Dr.
Mário Soares, cliente assíduo da "Académica", na qualidade de Presidente
da República, condecorou o Nuno, relevando dessa forma o alto serviço que
o livreiro portuense tem prestado à Cultura do País.
Devo ao Nuno inúmeras atenções e uma solidariedade expressa em inúmeras
ocasiões quando me faculta por empréstimo, compra ou doação, livros,
folhetos, manuscritos, outros documentos, alguns raríssimos, que ele sabe
que são do meu inteiro agrado porque interessam ao género de trabalhos que
faço como jornalista interessado pela História do Porto.
Foi muito bom para mim que o José da Cruz Santos se tivesse lembrado de me
pedir que com ele colaborasse nesta "partida", porque me deu o pretexto
para pagar ao Nuno uma dívida com ele contraída e nunca saldada - a de
dizer com o tom de voz mais alto de que disponho que muito do trabalho por
mim produzido a favor do Porto o devo, em grande parte, à sua generosa
contribuição.

JOSÉ MANUEL PAVÃO (Presidente da Assembleia Municipal
de Mirandela)
Tem direito a saco!
Não custa nada! É oferta da casa... e ainda tem direito a saco! Quem assim
fala é o Nuno Canavez, trasmontano, mirandelense, livreiro antiquário,
casado e pai de três filhos.
Do outro lado do balcão está uma jovem cliente à procura de elementos para
o seu trabalho, que entre a surpresa e gratidão, parece de todo não
acreditar...
Este é um pequeno mas repetido episódio, que bem poderá ajudar a conhecer
melhor a figura e o carácter do Nuno Canavez. Mas há mais!
Ao arquivo da minha memória, já longo que os anos passam, fui buscar um
outro em que os amigos e conterrâneos quiseram assinalar o cinquentenário
da sua actividade de livreiro. Por sugestão do Germano Silva, esse
incansável e ilustre jornalista portuense, na placa que então
lhe oferecemos ficou lavrado o seguinte:
– “Ao Nuno Canavez, por nos ter ensinado a amar os livros”
Esta é, a meu ver, a sua grande marca no comércio dos livros antigos. A
raridade das edições, a beleza das capas, os erros de impressão,
ilustrações, dedicatórias, notas à margem a tinta e a lápis, as badanas,
eu sei lá, tantos e tão curiosos pormenores que por sua proximidade e
influência aprendemos a valorizar e a poder seleccionar as colecções.
Alegre, extrovertido, convivial, irreverente quanto baste, solidário sem
exibir, amigo do seu amigo, se estiver em dia sim, é um prazer ouvi-lo no
seu humor contagiante. Lutador e determinado, com o culto da família a
quem dedica o seu afecto, o Nuno soube impor as suas qualidades na
comunidade livreira fazendo-se respeitar pela experiência e sabedoria.
Mas onde ele é mais igual a si próprio é quando o vemos para lá do Marão,
onde infelizmente já não mandam os que lá estão...! Eufórico e
sentimental, deslumbra-se com a paisagem que sabe de cor, repete-se nas
memórias do passado, procura velhos amigos e no campo santo que visita
regularmente, conversa com os seus numa aparente naturalidade de quem tem
a mesma idade. Aí sim, é que o Nuno é grande e eu o aprecio!
Amigo da terra que o viu nascer quer agora criar na sua Mirandela um
Arquivo bibliográfico Transmontano – Duriense! Persistente como é, sabemos
que vai conseguir. Para sua alegria e bem de todos...

ANTÓNIO BARBEDO
Um livro, outro sábado
No Porto há muitas formas de chegar aos sítios. A pé, sem dúvida, é a mais
interessante. No jardim desci as escadas da Arca de Água. E por aí iniciei
uma das possíveis viagens nos subterrâneos da cidade. Encadernado com
impermeável, capacete para não ser “aparado à cabeça” como os livros.
Arrastando as galochas pela água das galerias, minas, aquedutos que
outrora abasteceram a cidade. Vociferando com a vizinhança, cegueta que a
lanterna pouco iluminava. Finalmente saí pela porta verde com degrau alto,
junto à Fonte das Oliveiras no Largo de Alberto Pimentel. E ofegante
soletrei: “A Livraria Académica foi fundada em 1912 – Vende li – vros an –
tigos e – moder – nos”. Vou entrar na Livraria, perguntar a Nuno Canavez,
por exemplar estimado de Um Motim Há Cem
Anos de Arnaldo Gama. Reler deliciado a Introdução, em especial
o que à biblioteca do antiquário diz respeito. E sobre o mapa do Porto de
1757 desenhar outro percurso.

ANTÓNIO REBORDÃO NAVARRO
Um abraço ao Nuno Canavez
Transacções mútuas tornaram-me amigo de Nuno Canavez. Uma amizade que foi
ganhando mais força com o correr dos anos, desde os tempos em que,
estudante no Colégio Almeida Garrett, comecei a frequentar a “Livraria
Académica”, a adquirir ali as obras então raras do Poeta Mário de
Sá-Carneiro. Uma amizade que não apenas se deve à sua simpatia e ao seu
bom trato, mas a actos que os transcendem. Com efeito, não posso esquecer
que sabendo o Nuno Canavez estar eu a escrever o meu romance “Amêndoas,
Doces Venenos”, baseado no célebre caso protagonizado pelo Dr. Urbino de
Freitas, gentilmente me ofereceu dois livros relacionados com o assunto:
“O caso médico-legal de Urbino de Freitas” e o “Exame e Refutação dos
Pareceres Constantes dos Suplementos à Coimbra Médica” do Dr. Agostinho
António do Souto.
Assim com todo o gosto me associo à justa homenagem que agora se lhe
presta.

DAMIÃO VELLOZO FERREIRA
Nuno Canavez
Um livreiro antiquário – Um homem de Cultura
Entrei pela primeira vez na Livraria Académica pela mão de meu saudoso
Pai, teria eu uns quinze anos de idade. Meu Pai tinha-me incutido já o
gosto pelos livros, e recordo-me de ter ficado deslumbrado pelas lombadas,
de cores variegadas e lustrosas, dos livros alinhados nas prateleiras,
como soldados em parada, em dia de gala.
Frequentando o sexto ano de Letras no Colégio Almeida Garrett, ali ao
dobrar da esquina, passei a ser um frequentador quase diário daquele, para
mim, local de descoberta e encanto.
O senhor Guedes da Silva, dono da Académica, sentava-se num cadeirão, a um
canto, repousando das canseiras da vida, em tertúlia com alguns
intelectuais do Porto.
Nuno Canavez – o Nuno para os íntimos – era já a alma daquela Casa.
Recebia os clientes com aquela franqueza transmontana, sempre com uma
graça na ponta da língua, sempre pronto a zurzir, com a independência que
era seu ponto de honra, qualquer maroteira da nossa vida pública, viesse
ela donde viesse.
Tratava os livros como filhos, e ao contrário de alguns “colegas” que
vendem livros como quem vende presuntos, conhecia-lhes o miolo, as
particularidades, as voltas e reviravoltas que os livros dão.
Com graça dizia que os seus melhores clientes eram as viúvas, que vendiam
os livros a metro, porque nunca os tinham lido.
Para ele havia três tipos de clientes: o adolescente ávido de cultura e
que procurava um livro dentro das suas poucas posses; o que comprava
livros para investir, como se fossem acções: e o bibliófilo que ama os
livros como objectos de requinte, saboreando o valor cultural dos mesmos e
conhecendo a vida íntima das edições.
Pelos primeiros tinha simpatia e uma paciência de Job; pelos segundos um
desprezo olímpico, ainda que disfarçado; com os últimos criava uma
cumplicidade amiga.
Nuno Canavez e a Livraria Académica são uma instituição do Porto culto.
Nós que somos tão avessos a valorizar os Homens em vida, e não raras vezes
até depois da morte, temos a satisfação de saber que o valor de Nuno
Canavez foi reconhecido pelos Poderes Públicos com a atribuição de uma
merecida Comenda.
É este o testemunho de um velho camilianista.

DOMINGOS DE AZEVEDO LIMA
Foi-me pedido por José da Cruz Santos para dizer algumas palavras sobre
o nosso comum amigo Senhor Nuno Canavez, ilustre alfarrabista da cidade do
Porto.
Conheço o Senhor Nuno há muitos anos, desde os tempos de empregado da
extinta Livraria Lusa, tendo por ele a maior consideração e apreço,
reconhecendo-lhe um enorme valor profissional na área que tão dignamente
abraçou.
Sempre que, em termos de trabalho, a ele recorri, procurando a sua ajuda,
nele encontrei disponibilidade e atenção.
Pessoalmente, todas as vezes que tive necessidade de procurar determinadas
obras para enriquecimento do meu espólio literário, estas foram-me
gentilmente oferecidas, o que demonstra a extrema generosidade que também
o caracteriza.
Em conclusão, reitero a minha profunda amizade e admiração pela Senhor
Nuno, considerando da mais elementar justiça tudo aquilo que venha a ser
feito em sua homenagem.

FERNANDO FERNANDES
Nuno Canavez
Os livros são cada vez mais uma paixão solitária
Paulo Moura
Solicitado a prestar um breve depoimento destinado a uma
edição de homenagem ao livreiro-alfarrabista Nuno Canavez, achei que não
me devia eximir do encargo apesar dos meus contactos com a Livraria
Académica e com o próprio Senhor Nuno Canavez, ao longo dos 50 anos que
levei como profissional do livro, terem sido ocasionais e fortuitos, sem
nada de relevante que mereça ser destacado.
Nunca fui frequentador assíduo de alfarrabistas, antes de mais e
principalmente por incompatibilidade de horários mas, como apaixonado que
sou pelos livros, novos ou usados, nunca deixei de ir acompanhando, mesmo
à distância que fosse, a actividade altamente meritória dos principais
alfarrabistas do Porto, dos quais me permito destacar, como figuras
cimeiras, os Senhores Nuno Canavez e Manuel Ferreira, sem esquecer outros
nomes que fazem do Porto uma cidade bastante rica para quem gosta e se
interessa por velhos alfarrábios.
Sou testemunha (e também parte activa como livreiro que fui) do tempo em
que, ainda na Praça da Liberdade, rodeando a estátua do D. Pedro, e
posteriormente noutros locais da cidade, a Feira do Livro era composta
apenas pelos livreiros, editores e alfarrabistas do Porto. Os editores
de Lisboa ou de outras cidades do país teriam que se fazer representar
através de livrarias e editoras sediadas no Porto. Assim o exigiam os
regulamentos em vigor na altura e que posteriormente foram alterados ao
arrepio dos livreiros, dando aos editores o poder de se fazerem
representar directamente. Isso permitiu que, ao contrário do que hoje
acontece, em que a maior parte dos pavilhões é servida por pessoal
eventual, sem conhecimentos e preparação para a função que desempenham,
nessa época e durante muitos anos eram os próprios livreiros e editores,
com a sua presença, a dar uma maior dignidade à Feira e a permitir uma
qualidade de atendimento que os visitantes hoje não têm.
Esta situação resulta também da perversidade de na mesma Associação
estarem representadas duas classes com interesses muitas das vezes
antagónicos, onde os livreiros nunca tiveram poder e influência. Creio que
na Europa esta é uma aberração só existente em Portugal.
Para quem frequenta livrarias e acompanha por isso o que se vai
publicando, era muitas das vezes nos alfarrabistas que encontrava “aquele
livro” de que há muito andava à procura. A vantagem de os alfarrabistas
ocuparem um mesmo espaço, facilitava a busca dos seus fundos sempre muito
variados e era um motivo acrescido para as pessoas visitarem a Feira. Pena
que hoje já assim não seja.
Foi na primeira Feira em que participei, na Praça da Liberdade, já lá vão
cerca de 50 anos, que conheci o Senhor Guedes da Silva, proprietário da
Livraria Académica, e o Senhor Nuno Canavez, seu colaborador mais próximo.
Com a morte do Senhor Guedes da Silva, o problema da continuidade, que
ainda hoje é um drama neste sector, foi naturalmente resolvido com a
assunção pelo Senhor Nuno Canavez de todos os negócios da livraria, que
havia sido fundada em 1912.
Em entrevista dada há alguns anos, ao “Notícias Magazine”, lembrava Nuno
Canavez a recomendação que o seu antigo patrão lhe dava: “tu nunca pegues
indiferente num livro, sente o volume, depois vê o recheio, folheia e
atenta nos pormenores.” “Era uma aprendizagem magnífica”, acrescentava
Nuno Canavez.
Este conselho, quanto a mim, ainda hoje é inteiramente válido não só para
os livros antigos mas, e sobretudo, para os livros recentes, cujas
novidades invadem diariamente as livrarias.
Qualquer candidato a bom livreiro deveria seguir este conselho e não
tratar o livro como um objecto qualquer, confiando apenas no que o
computador regista e identifica.
A natural rudeza transmontana pelo próprio Nuno Canavez confessada, a
maneira extrovertida de lidar com os outros e o seu verbo fácil, a par da
grande competência profissional resultante do “estudo permanente dos
livros e uma relação íntima com a leitura”, granjearam-lhe, ao longo da
vida, inúmeros amigos e admiradores. Daí a justeza desta homenagem.
Fevereiro 2008

FRANCISCO DUARTE MANGAS
O Guardador
ao Nuno Canavez
A infância e os rebanhos
suspende nos montes
e caminha na porfia de um ofício.
Na cidade grande, tão longe do rumor
das giestas, aprende a arte de amar
os livros: perseverante ofício.
Faz-se guardador
da palavra, rara, a mais ténue
memória dos livros: tudo o que resta
afinal do remoto maravilhoso.

GOMES FERNANDES
Nuno Canavez
Para mim, o Nuno Canavez é uma personagem de romance:
Torgueano nas origens; Queirosiano na figura; Camiliano no feitio; amigo e
solidário como só os grandes corações o conseguem ser. Liga-nos a amizade
nos livros e o companheirismo rotário na visão comum da comunidade onde
nos movemos.
A vida do Nuno, como disse, dava um romance, e a atmosfera que com ele se
respira na Livraria Académica remete para iniciáticas experiências que os
anos vão consolidando, como se estivéssemos a revisitar de cada nova vez
toda a carga de mistérios dos sagrados templos da cultura e sedução. Quem
entra como amigo não resiste a sair como cliente, tantos e tentadores são
os apelos que o Nuno acumula nas suas velhas estantes e prateleiras, do
mesmo modo que quem entra como cliente, se essa condição arrisca assumir,
não se livra de sair de lá como amigo, que em breve sentirá o impulso de
voltar.
Não sou um coleccionador apurado das peças raras que este amante dos
livros tem o condão de descobrir nas secretas profundezas de espólios em
desmembramento ou forçados a entrar no mercado por circunstâncias
financeiras, mas o melhor que tenho do Porto, e é alguma coisa, tem sido
encontrado ali, ao fundo de Mártires da Liberdade e onde se fala muito
desta, seja em salutares e emocionantes exercícios de memória, ou na
reflectiva preocupação de ver o livro cada vez mais marginal no traçado de
percursos do nosso futuro colectivo.
O Nuno fica triste e azedo, até, quando fala disto, porque a sua vida
dedicou-a aos livros e àquilo que estes lhe ensinaram, seja conhecimento,
cultura ou cidadania, tudo devidamente encadernado numa rica e vasta
experiência de muitas décadas que o elegeram, justamente, cidadão de honra
do nosso património cultural.
As cidades históricas, como o Porto, sempre foram marcadas por referências
monumentais que as dataram por épocas, acontecimentos trágicos ou épicos,
personalidades políticas, culturais e sociais que ficaram com os nomes
colados ao seu processo urbano de desenvolvimento: As “cercas” sueva e
fernandina; o Infante e o generoso e esforçado contributo dos “tripeiros”
para a esquadra de Ceuta; a sagacez e o protagonismo de Afonso Martins
Alho na celebração com Eduardo III de Inglaterra do mais antigo tratado
europeu de amizade; a capacidade criativa de Nazoni na definição do
barroco portuense e do ex-líbris dos Clérigos, ainda hoje a torre mais
bela e esbelta da cidade; os Almadas e o salto urbanístico para a
modernidade; as lutas liberais e o “rei-soldado” que doou à cidade o seu
coração; o 31 de Janeiro e o seu desfecho sangrento de abertura do caminho
à República; as pontes de dificultosa amarração à outra margem; A “Praça
Nova” da Liberdade e a Avenida dos Aliados; Garrett e Herculano, Ramalho
Ortigão e Antero, Bruno, Camilo, Agustina e Eugénio de Andrade, tudo
factos e gente com lugar cativo no prédio estreito de dois pisos com porta
central e duas janelas-montras a um e outro lado, como se fossem os olhos
do Nuno abertos a mostrar aos passantes a imensa riqueza que a sua
experiência e saber foram acumulando na alma profunda daquele espaço
mágico do Porto.
Dele se deve falar com amizade e respeito, mas sem esquecer nunca a grande
admiração pelo percurso contratual de vida que fez com o livro e a
cultura, lançando em permanente renovação geracional pontes que vão da
juventude curiosa e iniciática à maturidade vasta e consistente de quem
continua a procurar o saber e o conhecimento, pois a todos ele acarinha e
aconselha com igual simpatia e generosidade.
O Nuno foi agraciado com uma comenda pelo Presidente da República Mário
Soares, mas não gosta que se fale disso, continua igual, ou melhor, talvez
mais empenhado ainda neste casamento para a vida que fez com os livros.
São assim os cidadãos grandes desta terra portuense, mesmo que nunca
esqueçam as ásperas origens da montanha, como o Nuno faz com a Biblioteca
de Mirandela, a quem enriquece permanentemente com a “oblata” dos seus
livros.
A vida do Nuno Canavez, volto a dizê-lo, pode ser que ainda venha a dar um
romance.
Fevereiro 2008

IVO CALDEIRA
Nuno Canavez
A Livraria Académica é um castelo com muralhas de livros e
papéis centenários que contêm saberes, histórias, vibrações do mundo. O
Nuno Canavez é o guardião desse território. Atrás do balcão da Livraria
Académica não está um alfarrabista. Está o homem que é a personificação de
memórias infinitas que se escondem atrás de capas castanhas ansiosas por
revelar dramas, guerras, descobertas, viagens, amores. Segredos. Basta uma
indicação, mesmo que imprecisa, ou uma referência vaga a uma obra de
circulação restrita e o Nuno Canavez tem quase sempre uma resposta para o
interlocutor. Ou tem o livro pretendido, ou já lhe passou pelas mãos.
Conhece-o, quase sempre. O Nuno alia as suas invulgares qualidades
profissionais com a capacidade de cativar os amigos, a quem se dirige em
voz bem alta, franca, com um saboroso tom irónico. Pela minha parte, um
imenso obrigado nunca será suficiente para agradecer ao Nuno tantas
atenções e tantas deferências, ao aceitar, como se fosse da casa, a
presença de um simples viajante a quem foi concedido o privilégio de
entrar e poder olhar a vida a partir das mágicas muralhas do admirável
edifício de palavras.
Porto, Abril de 2008

JORGE SOUSA BRAGA
Livraria Académica
Todas as quartas-feiras entras
na Livraria Académica passas
os olhos pelas lombadas
dos livros alinhados sobre
o balcão folheias um ou
outro devagar… O que procuras
entre tanta prosa amarelecida?
Uma palavra que
justifique a tua vida.

JORGE VELHOTE
Ergui no lugar raso uma montanha
para o Nuno Canavez
O que direi da penumbra quando for exausto o meu
esforço, quem
escutará a simetria do tumulto na cegueira do
mercador?
Este meu apego culminará na leveza própria dos
incêndios com que sempre
os livros e a loucura e o mais obscuro dos fulgores se
iluminam humildes.
Ergui no lugar raso uma montanha, uma tempestade de
palavras e papel,
um inferno de sangue e música corrosiva
que deambulam, secretíssimos,
entre respiração e lamento, oferecendo
a intranquilidade do conhecimento
e da fortuna ao desenho dos lábios
e à sombra dos dedos.
Uma luz, uma luz de papel ilumina e envolve ainda o
meu olhar,
o abismo puro e o gelo onde lavei os olhos
da escuridão e o rumor dos muros –,
a trágica
sonoridade de um quarto
vazio de livros
e rasgadas flores
silvestres.

JOSÉ VIALE MOUTINHO
Carta aberta a Nuno Canavez
Meu caro Nuno Canavez, conhecemo-nos há quantos anos?
Creio que nem um nem outro o sabe, porque a primeira vez que franqueei as
portas da Livraria Académica foi sem funções de autonomia intelectual,
pela mão de meu pai, que ia comprar qualquer livro ou charlar um bocado
com o Sr. Guedes da Silva. Só muito mais tarde é que me apercebi quem era
o moço que o mestre lá tinha como aprendiz, e a quem dispensava um apreço
que bem valia uma consanguinidade. E logo que entrei pelo meu pé já na sua
livraria, à procura sei lá de quê, apercebi-me da falsa aspereza do seu
trato de transmontano dos de Mirandela. Depois, quando me apercebi da sua
busca incessante de obras sobre o seu território com vista a doá-las ao
centro geográfico da região das raízes da família Canavez, confesso que
fiquei um pouco triste, pois duvidei por um instante das suas excelentes
faculdades mentais. Atrevia-se você a medir pela sua bitola os seus
conterrâneos, julgando-os merecedores de uma generosidade que os
comprometia ad saeculorum? Não
bastava o capitão Sarmento Pimentel ter-se batido pela República na
Rotunda de Lisboa no 5 de Outubro e noutras datas de perigo, não bastava
ele ter feito chegar, das outras bandas do mar Atlântico, à terra comum a
sua livralhada de curioso de várias artes e o meu caro Nuno Canavez a
encaixotar quanto diz respeito a Trás-os-Montes e Alto Douro com rumo à
sua terra? Como se não bastasse, esfola os olhos e os dedos fazendo uma
muito completa biografia em progresso sobre a grande e triste região,
exaltando-lhe os valores, ou apenas amostrando-os? E tudo isto para quê?
Para que ela fique mais rica.
O seu altruísmo, meu caro Nuno Canavez, só poderá ter uma retribuição,
saibam quantos olharem para si como exemplo: a ingratidão. Aconselho-o
vivamente a prosseguir na sua obra notável de generosidade e entrega
enquanto faz os seus negócios de alfarrabista ou, como agora se diz, de
modo mais fino, de livreiro-antiquário. Não conte com muito mais do que
isso. A comenda que lhe foi parar ao
curriculum é fruto de um espírito de reconhecimento muito à
século XIX, de um presidente da República que ainda se emociona com estas
coisas da Cultura. Foi uma espécie de D. Luís I com barrete frígio em vez
de coroa que o condecorou, mas sem intermediários do paço. O que tantos se
matariam por uma venera dessas! E você recebeu-a à boa maneira
transmontana, mas não sei se lhe manda dar lustro nas vésperas da Páscoa,
por altura das limpezas gerais da casa!
Quantos tesouros bibliográficos lhe passaram pelas mãos, Nuno Canavez?
Quantos manuscritos? Quantas cartas se desviaram das suas rotas para que
fossem lidas por si e passadas às mãos de amantíssimos coleccionadores?
Quantos lhe confiaram segredos das suas desgraças e se desfizeram de
edições em actos que você, como o Régio, teria pudor de contar seja a quem
for? A quantas pessoas alegrou com o número que faltava da colecção da
Presença ou de uma outra colecção
qualquer? Quantas vezes emprestou um livro fundamental para a tese de
alguém que você mal conhecia só porque esse alguém lhe caiu no goto e fez
um manguito nas costas, ou nas ventas, de alguém que se queria pendurar
abusivamente na sua boa vontade? Meu caro Nuno Canavez, a paixão dos
livros é assim mesmo. Se não fossem os pequenos gestos, as contradições,
as generosidades, a amizade, a inveja, o ódio, a complacência, a surpresa,
a descoberta, se não fosse tudo o que ignoramos um momento antes de o
sabermos e a frustração de sabermos e depois não estar lá, que gozo teriam
os livros, as livrarias, os alfarrabistas? E entrar na Livraria Académica,
onde, por vezes, um escritor dá de caras com a amargura de um livro que
dois anos antes dedicou a fulana ou a sicrano, com protestos de amizade,
que não chegaram para fixar a espécie bibliográfica às prateleiras da sua
biblioteca, pelos vistos mais escolhida do que se esperava…
Não tem grande importância há quanto tempo nos conhecemos. Só sei que,
mesmo sem se dar conta disso, aprendi imenso consigo, com os seus livros.
É por isso que, às vezes, lhe recomendo o raio de um livro e esse livro
tem de ser muito bom, doutro modo eu ficaria calado. Como poderia eu
compensá-lo, se não me posso dar ao luxo de lhe comprar preciosidades
bibliográficas à boa maneira do velho Visconde de Azevedo?
Bem, com esta carta quero dizer-lhe publicamente aquilo que você
particularmente já sabe, que o estimo, etc. e tal, que sou seu amigo e
cliente e lhe recomende que vigie as suas generosidades, pois, ao
contrário do que eu pensava, nem todos somos iguais. Há uns que são um
bocadinho diferentes. Para o fraco, desbotado e indiferente, valha a
verdade. Verdadeiras instituições, convenhamos. E é pena isto ser verdade,
não é?
Um abraço do José Viale Moutinho

JÚLIO COUTO
Sobre o Nuno
Não é fácil escrever sobre um Amigo, porque, ou, por medo,
fica de menos, ou, por entusiasmo, fica de mais. Mas, tratando-se do que
se trata e de quem se trata, vamos tentar ratear encómios e cá vai:
Foi em 1912, que o Senhor Joaquim Guedes da Silva, abriu,
no n.º 77 da Rua das Oliveiras, a sua livraria a que deu o nome de
“Académica”; mas só no ano seguinte é que ela se instalou no local que
ainda hoje ocupa. Mais ou menos duzentos metros acima, ficava a sede de “A
Renascença Portuguesa”, o mais extraordinário movimento cultural que se
radicou nesta cidade. Como é lógico, a “Académica” passou a ser ponto
“obrigatório” de passagem dos homens da “Renascença”, casos de Aarão de
Lacerda, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e tantos
outros que a cultura e as boas maneiras do Senhor Guedes da Silva foram
transformando em clientes certos e amigos fiéis.
E foi para este cenáculo de cultura e de bom gosto que, em
3 de Outubro de 1948, com 13 anos apenas, chega um jovem transmontano,
vindo de Vale do Juncal, ali perto de Mirandela. Era o Nuno Canavez que
vinha para marçano da livraria, na justa ânsia de procurar ganhar o seu
pão de cada dia e desemburrar o “empinanço” de uma quarta classe, feita lá
na terra, mas do tempo em que era de exame rigoroso e com professor que só
levava a exame quem lhe desse garantias de passar. Enfim, estudava-se...
Marçano, ao tempo, era um misto de mulher-a-dias,
mandarete e alombador de pesos mais ou menos pesados, o que, no caso em
causa, se traduzia por varrer a loja, lavar vidros e escarradores, levar
livros a clientes ou ao correio e efectuar outros recados (o chamado
serviço de rua) e carregar com livros para as estantes, para o primeiro
andar e, às vezes, levá-los para o armazém, etc. Mas também dava o direito
de abrir os livros e ir bebendo os conhecimentos de tanta gente culta que,
em diálogo com o patrão, ia falando de livros, da cidade, da política do
tempo e do tempo da política, etc.
Até que o jovem Nuno se dá conta de que tinha de ir mais além, para não
acabar os seus dias como marçano, e vai-se matricular no Curso da Escola
Comercial Oliveira Martins, ao tempo conhecida entre nós pela “Tasca do
Matias” (por causa de o seu director ser o Dr. Matias Serra), com casa na
Rua do Sol. Era trabalhador-estudante (bem, o termo é muito moderno; ao
tempo éramos só alunos do curso da noite) e aí vai encontrar um comum
Amigo, o Germano Silva.
A sua vontade de querer “trepar” na vida, leva a que o
Nuno, quando regressa de cumprir o serviço militar, creio que em 1957,
resolva deixar o patrão, onde se tinha iniciado nos mistérios dos livros,
das suas edições, das encadernações, enfim no mundo do Al-Farabi, e
resolve soltar o seu “Grito de Ypiranga”. Associa-se ao velho senhor
Oliveira e nasce, em Cedofeita, a “Lusa”.
Mas o Senhor Guedes da Silva sabia avaliar os homens e
tinha detectado no Nuno o seu continuador, de modo que o vai buscar, com
condições mais vantajosas, claro. E lá regressa o Nuno aos seus velhos
amores – a “Académica”. Pelo falecimento do Senhor Guedes da Silva, em
1972, o Nuno torna-se proprietário da casa. Sempre atento aos seus três
tipos de clientes, ele, ao longo de quase duzentos catálogos, fornece
informações a tudo quanto é gente interessada por livros, inclusive
colegas que não deixam de o consultar, para comparar preços, ter novas
informações ou saber novidades.
Sempre fiel ao seu lema “Do estudo floresce a luz”,
considera-se ele próprio um permanente estudioso, tendo a humilde
sabedoria de saber que não sabe tudo (e ele sabe muito...) e está sempre
disponível para ouvir, para trocar impressões, mas acima de tudo, um Homem
Bom e generoso, tantas vezes capaz de se esquecer que é comerciante e não
cobrar dinheiro a jovens estudantes ou a clientes eventualmente menos
abonados.
Fomos testemunha de um caso de ternura que não queremos
deixar de relatar: um jovem, com aspecto modesto e mesmo muito jovem,
entrou na loja e, quase a medo, perguntou ao Nuno se tinha “Os Lusíadas”
para vender. O Nuno fez cara de pau e perguntou: “Olhe lá, e para que é
que você quer o livro?” O jovem, muito a medo, explicou que era preciso
para o Liceu, mas o pai ganhava pouco e não podia comprar um novo. Daí
procurar um já usado... E o Nuno, mantendo a cara de pau, mas com olhos
rasos de lágrimas, oferece o livro ao pequeno, mas com o recado: “Vai
levar o livro, que sou eu que lho ofereço, mas ai de si se eu souber que
não estuda.” O pequeno, entre comovido e atarantado, lá ia acariciando a
capa do livro, mas com a certeza de que iria estudar, lá isso iria...
E a visível ligação do Nuno às suas raízes transmontanas
são por demais conhecidas por todos nós e centos e centos de livros tem
carreado, como oferta, para a Biblioteca de Mirandela.
Mas atenção, “quando está com os azeites” o melhor é
cumprimentar e voltar outro dia. Felizmente que as tardes de “telha” (é
quase sempre de tarde) são poucas e a afabilidade e gentileza compensam,
de longe, a “dureza” dessas tardes...
Aquando das comemorações dos oitenta anos da “Académica”,
o Nuno levou a cabo duas extraordinárias exposições: Uma sobre o livro e
outra sobre as encadernações (é um dos calcanhares do Nuno, a par dos
fins-de-semana de caça, em que encerra a porta e não atende ninguém...). O
Dr. Mário Soares, aliás cliente habitual da casa, veio de propósito, de
Lisboa, para estar presente na inauguração.
Tem em depósito entre 150 e 200 mil volumes e, quantas
vezes, ao efectuar uma compra, o encontramos mais encantado como
bibliófilo que como alfarrabista.
E já agora, para não nos alongarmos mais, ou repetir o que
tantos por certo vão escrever, vou-me dar ao prazer de contar uma
deliciosa história, de que tivemos conhecimento pessoal e só a
reproduzimos depois de devidamente autorizados pelo Dr. Mário Soares, ao
tempo Presidente da República.
É clássica a aversão do Dr. Mário Soares a tudo quanto
seja polícia ou vigilância policial, mas, dado o cargo que exercia, não se
podia furtar ao pessoal encarregado de zelar pela sua segurança.
Tinha vindo em funções ao Porto e, como sempre,
hospedou-se no Hotel Infante de Sagres e, nessa manhã, levantou-se cedo e
conseguiu esgueirar-se por uma porta lateral, sem que a segurança desse
por ele, e há que se raspar, a caminho da Académica.
Quando a Dr.ª Maria Barroso desceu para tomar o
pequeno-almoço, foi, como é lógico, cumprimentada pelo pessoal da
segurança, que, amavelmente, lhe perguntaram pelo marido, recebendo a
cândida resposta de que tinha saído há já muito tempo...
O homem ficou lívido e, de imediato, accionou os sistemas
previstos para uma tal situação e há que começar a revolver a cidade, na
esperança de encontrar o Senhor Presidente da República. Mas só perto do
meio-dia depararam com ele, tranquilamente descendo a Rua de Ceuta, com os
dois braços ajoujados de livros, trazidos da Académica.
Esse conhecimento e essa amizade haviam de ficar mais
vinculados ainda quando o Dr. Mário Soares agraciou o Nuno (e o Manuel
Ferreira), em 1992, com a honra de “Comendador”. Verdade seja dita que
nunca vimos um ou outro exibir o “chocalho”, como diz o Manel, mas que a
mereceram, mereceram, como continuam a merecer, no caso do Nuno, a amizade
de quantos, ao sábado, se reúnem em tertúlia, onde tudo é alvo de troca
desassombrada de opiniões e onde o tempo passa, quantas vezes sem por ele
darmos conta.
Que estas despretensiosas linhas não tenham outras
interpretações que não sejam as de um preito de amizade para com um
extraordinário Alfarrabista, Bibliófilo, mas sobretudo para com um Homem
Bom que o Nuno é para todos nós.

LUÍS CABRAL
Canavez, nome de livreiro
Quem vier dos lados do Carmo ou descer da Praça da
República logo encontrará num pequeno largo a simpática fachada da
Livraria Académica. Fica quase ao pé da característica fonte das
Oliveiras, não longe do sítio onde era a casa em que nasceu Alberto
Pimentel (1849-1925), pioneiro dos Estudos Portuenses.
Fundada em 16 de Novembro de 1912, a Livraria Académica teve, de
princípio, sede na Rua das Oliveiras, n.º 75-77, mudando-se, pouco depois,
para a Rua dos Mártires da Liberdade, n.º 10.
Joaquim Guedes da Silva – livreiro de toda uma vida – foi o seu fundador.
Pessoa sensível, profissional prestigiado, espírito aberto a transmitir
aos outros os seus conhecimentos sobre o livro, os meios intelectuais do
Porto e do País tinham-no em elevada consideração.
Em 1948, nos seus pequenos treze anos de olhos bem vivos, Nuno Canavez
chega ao Porto, vindo de Trás-os-Montes – região de onde provinha, então
como hoje, a nossa maior comunidade com origens extramuros. Muda-se
justamente para trabalhar com alguém que já era um livreiro consagrado – o
Senhor Guedes da Silva (como o
Senhor Nuno sempre mas sempre se
lhe refere).
Durante anos aprende com paciência e método o seu ofício ou arte. De certo
modo estes dois homens dos livros – Guedes da Silva e Nuno Canavez –
inserem-se ainda nas velhas tradições dos editores, livreiros e tipógrafos
portuenses. O jovem Nuno vai caminhando e o estabelecimento evoluindo, até
que em 1962 Guedes da Silva partilha com ele a sociedade. Em 15 de Janeiro
de 1972, por morte do fundador, Nuno Canavez passa a ser o único
proprietário da Livraria Académica.
A primitiva livraria – que se dedicava ao comércio corrente, evoluindo
depois para o ramo do livro raro ou esgotado, tinha como quase vizinha a
sede da Renascença Portuguesa. Inseria-se também na zona urbana mais
vocacionada para o Ensino e a Cultura. Ficava perto da Universidade, dos
dois liceus e da escola técnica, do Conservatório de Música, etc. Esta
parte da cidade, ainda é assim, concentrava bastantes livrarias. Muitos
eram os clientes que por ali circulavam – professores, estudantes,
artistas, pessoas que às vezes se transformavam em amigos dos próprios
livreiros. Um pormenor curioso e porventura ignorado é que a própria
Guilhermina Suggia teve entre as suas partituras pelo menos uma com origem
na Livraria Académica.
Logo nos princípios a Livraria publicou catálogos dos livros de que
dispunha para venda, tradição que Nuno Canavez manteve até hoje. A
Académica participou em feiras do
livro, tem promovido tertúlias literárias e culturais, dedica-se à edição
de catálogos e boletins temáticos, realiza com regularidade exposições
bibliográficas.
Falando de catálogos logo nos lembramos do meritório, dedicado e
competente trabalho de recolha da bibliografia transmontana e
alto-duriense, que ascende já a umas centenas de títulos por ele doados à
Biblioteca Municipal de Mirandela, seu concelho natal.
Em Nuno Canavez as pessoas em geral destacam – sobre um fundo humano
intrinsecamente positivo – uma inesgotável energia de que a sua voz é
expressão característica. Já não sei é se poderemos dizer que ele é mais
transmontano ou mais portuense. A postura e os traços físicos, com o tal
timbre de voz, algumas atitudes de frontalidade, de emoção e de franqueza
pertencerão aos lados que ficam para lá do Marão? Mas não será que a sua
abertura de espírito, o seu sentido de humor, a sua generosidade e
disponibilidade para os outros são traços de todo o lugar onde um Homem
bom cresce, amadurece e vive, trabalha e lhe nascem os filhos, onde modela
as verdadeiras amizades?
Caro Senhor Nuno
Entrei pela primeira vez na sua
Académica em 1969, imberbe estudante de um primeiro ano de
Letras. E nunca mais deixei de me
sentir fascinado por aquelas suas duas montras.
Hoje, sessenta anos passados na tão nobre profissão de livreiro, o que
posso desejar-lhe?
Vida, saúde e paz, felicidade para a Família, êxito no trabalho e a
fidelidade dos amigos de sempre, entre os quais sei que me conta.
Que continue, assim e por muitos anos, tal como é, feliz e sempre de bem
com os homens por causa dos livros.
Porto, 2 de Abril de 2008

LUÍS VALENTE DE OLIVEIRA
O Senhor Nuno Canavez é um dos livreiros antiquários mais
competentes do Porto, cidade que tem a sorte de ter alguns dos mais
distintos profissionais portugueses deste ramo.
Não é somente sabedor! Os bibliófilos podem contar com a
sua colaboração – mesmo com a sua cumplicidade – na procura de peças raras
ou daquelas que, pura e simplesmente, lhe fazem falta para o seu estudo ou
leitura. O que nele mais surpreende é o entusiasmo com que vive a
profissão. Quando consegue encontrar o livro procurado, fica tão contente
como o cliente e mostra-o com exuberância.
Pode dizer-se que vive o que faz com paixão que é a
receita mais segura de fazer as coisas bem feitas.
São muitos os que já beneficiaram do seu saber e do seu
empenhamento. Eu tenho a sorte de ser um deles.
Porto, 15 de Fevereiro de 2008

MANUEL ANTÓNIO PINA
O guardião
Como Alberto Caeiro, Nuno Canavez é um guardador de
rebanhos; no seu caso, os rebanhos são os pensamentos, as palavras, os
desejos, os pesadelos, e as luzes e sombras de que é feita a poeira da
memória dos homens. Sempre o vi assim, como um guardador de preciosos e
rumorosos rebanhos, ajeitando mecanicamente na estante algum livro
tresmalhado, os olhos atentos pairando sobre encadernações e lombadas, ou
então subitamente quietos, seguros da ordem absoluta do mundo
imperturbável da livraria. E como um pesquisador de ouro, do paciente ouro
do tempo, longamente acumulado no primeiro andar, caverna de Aladino a que
apenas iniciados têm acesso, e onde instintivamente baixamos a voz como se
tivéssemos entrado num templo. Há, de facto, algo de secreto e religioso,
no sentido literal da palavra, naquele lugar, como se fosse povoado de
fantasmas de deuses antigos e temêssemos acordá-los do seu sono de
séculos. Dormirão os livros? Provavelmente sim. O guardião, no entanto,
permanece eternamente desperto.
7 de Maio de 2008

MANUEL PINTO TEIXEIRA
Um homem para lá do tempo
O meu velho amigo José da Cruz Santos teve a felicíssima
ideia de passar a papel um conjunto de depoimentos de homenagem a um dos
grandes homens da cultura e da edição na cidade do Porto – o autor,
editor, livreiro, alfarrabista e bibliófilo Nuno Canavez. Dito de forma
mais simples, o homem que soube, como ninguém, dar continuidade à alma da
Livraria Académica, fundada em 1912 por Joaquim Guedes da Silva, e onde se
iniciou como marçano há precisamente seis longas décadas.
Pode bem dizer-se que essa notável instituição da cidade,
chamada Livraria Académica, se confunde com o próprio Nuno Canavez e
vice-versa. De tal ordem que nada existe, sai ou entra nas prateleiras da
Académica que não passe pelas mãos do homem que adoptou e se deixou
adoptar pelo projecto sonhado e criado pelo seu fundador, ainda no dealbar
da Primeira República.
Do fulgor dos primeiros anos de existência, de que os
“Homens da Renascença” são principais obreiros, herdou Canavez os
pergaminhos da troca de ideias, dos acalorados debates filosóficos,
políticos e literários. E daí que, ainda hoje, a Académica continua a ser
porto de abrigo, todos os sábados, da única tertúlia com carácter regular
que se mantém viva na cidade.
Lembro-me, com que saudade, das histórias na redacção de
“O Comércio” que me contava, na correnteza de palavras sem fim, o meu
amigo e camarada Ercílio de Azevedo, quando, regressado da Académica a
meio da tarde, trazia consigo um qualquer alfarrábio que lhe inspirava a
verve, tal como o copito de tinto que antes de entrar escorropichava ao
balcão da Minhota. Entre os conteúdos dos seus achados de coleccionador
compulsivo, e o cavaqueio que chamava à liça com Nuno Canavez, era difícil
distinguir o que mais empolgava o esquelético Ercílio. Iam quentes os dias
da Revolução e em ritmos acelerados, tal como o apego às andanças dos
clássicos que mais inspiravam o meu velho camarada, ele próprio uma alma
gémea de Canavez, se não no rumo, pelo menos nos gostos…
De Canavez se pode dizer que é um homem feliz, por, na sua
própria palavra em entrevista à “Pessoas”, dispor
“do que é fundamental à vida humana”.
Ou seja, vir para aqui, para a
Académica, “que é o meu mundo em
contacto permanente com os livros”,
onde, a qualquer momento, lhe pode cair nas
mãos “um exemplar que não conste nas
bibliotecas nacionais, e que nos emociona, que mexe connosco, que nos faz
vibrar. […] Ou então, quando um livro de um autor consagrado tem uma
dedicatória, o conteúdo que essa dedicatória encerra, a quem se destina,
são particularidades muito interessantes e que mexem connosco”.
Da alma de Canavez brota um olhar de convicções, tão
determinado como severo consigo próprio, mas também com os seus pares, sem
poupar quer as palavras quer os gestos dos poderosos que tecem os destinos
desta vasta irmandade nacional. Transmontano de sete costados, reflecte em
cada acto a sinceridade e a energia de quem assumiu, desde a infância, a
velha sentença segundo a qual “para lá do Marão mandam os que lá estão”. E
com que entusiasmo Nuno Canavez faz jus a este sagrado princípio, atestado
na vasta obra que dedicou à região que o viu nascer…
Canavez é um homem que o Porto acolheu, que o Porto
merece, mas nem sempre reconhece. Ainda é tempo para fazer justiça. Só não
é tempo para esquecer.
Porto, Fevereiro de 2008

MARCELO REBELO DE SOUSA
Nuno Canavez é uma instituição. Digo bem. Não é apenas a
sua Livraria Académica. É o próprio Homem. O que constitui uma raridade.
Significa ideia de obra ou de empreendimento que se impõe ao respeito e à
admiração de todos e que perdura no tempo para além da vontade daquele ou
daqueles que a geram. Isso mesmo. O seu amor ao livro, indissociável do
seu amor às pessoas, criou uma instituição. Reconhecê-la e homenageá-la é
digno, necessário e salutar, como se usa, ancestralmente, dizer no
Prefácio do conhecimento dos crentes, a que pertenço, e para os quais a
veneração dos homens bons – com ou sem crença – é imperativo ético. Além
de júbilo pessoal.

MÁRIO CLÁUDIO
Divina alergia
Se a epilepsia castiga aqueles que aspiram ao destino dos
deuses, a alergia brindará os que, explica Virginia Woolf, já não precisam
da coroa da vida eterna, beneficiários que foram do insigne gosto de ler.
É que o pó dos livros, digo eu agora, embebe-se de muita coisa, o aroma a
vinho e rosas, a ferida do sal das ondas, e essa memória, visitante da
solidão, que nasce do vagaroso relento das noites de amor.

RAMIRO TEIXEIRA
Com um braçado de torgas...
ao Nuno Canavez
Na minha particular galeria de portuenses ilustres,
nascidos ou fixados na urbe, que para mim é o mesmo, tem assento o
livreiro-alfarrabista Nuno Canavez, uma personalidade fascinante, com quem
trato desde que me julgo gente e ao qual me ligam esteios fortes de
amizade e de admiração. Não, seguramente, desde o tempo do ensino
secundário, em que acompanhava a minha mãe à Livraria Académica, em
procura dos livros oficiais em segunda mão, dado que esse era o tempo em
que os livros de ensino serviam, não digo gerações, mas todos os filhos
duma família, por décadas ou quase.
Por esse tempo, o Nuno Canavez, um quase-nada mais velho do que eu (ele
nasceu em 1935 e eu 1938), já teria abandonado essas lonjuras e espaço
perdido do Vale de Juncal, Abambres, pertença de Mirandela, então com
cerca de noventa fogos, depois de tirar a quarta classe, juntamente com
mais ou menos quarenta miúdos da sua igualha. Filho do meio de três, Nuno
Canavez nasceu em acto de rebelderia própria, por entre pequenos serviços
de lavoura e a fisgar passarinhos, penso eu. A fisgar andaria certamente,
tendo em conta que ainda hoje os fisga
com cartuchos de chumbo, passando, ao que me dizem, por caçador de
mérito de perdizes...
Seu pai, para a época, era instruído e tinha a sua importância no meio.
Alfaiate de profissão, possuía uma venda de géneros alimentícios e uma
debulhadora à qual todos recorriam para apurar o cereal. Além disso
pertencia à direcção da Casa do Povo, motivo pelo qual a ele igualmente
todos recorriam para a passagem de certificados de todo o género.
Da primeira presença do Nuno Canavez na Livraria Académica não me recordo.
E tão-pouco da sua passagem pelo curso nocturno da Escola Comercial
Oliveira Martins, que também frequentei à distância da diferença entre os
nossos anos, porque era assim que todos os que ambicionavam alguma coisa
de melhor começavam: a trabalhar de dia, desde cedo, e a estudar à noite –
uns no Oliveira Martins, vulgo Oliveira
Martelo, na gíria estudantil da época, outros na Escola do
Infante D. Henrique.
Claro que, por essa altura, já o Nuno Canavez tinha desembarcado na
estação de S. Bento, rumo à casa duma conterrânea na Rua Cimo de Vila,
mesmo em frente à Igreja do Terço, que o aceitou como hóspede e lhe deu
todo o amparo possível. E a tal ponto que, dois dias depois de arribar a
esta cidade do Porto, já ela o orientava para se apresentar na Rua
Mártires da Liberdade, na Livraria Académica, em resposta a um anúncio de
emprego publicado no “Jornal de Notícias”.
Chegado aqui, recorro à descrição castiça e sentimental que o referenciado
faz amiúde, e que eu, na medida do possível, vou tentar reproduzir com a
intensidade emotiva com que a tenho ouvido:
Jamais haverei de esquecer o dia em que, na companhia do meu pai, me vi
dentro de um combóio a caminho do Porto! Esquecer o dia é uma maneira de
dizer, porque, na realidade, esqueci a data do mesmo: apenas recordo o mês
de Outubro e o ano de 1948. Mas foram tantas as peripécias e os
acontecimentos vividos nesse dia, que ele, com ou sem data precisa, para
todo o sempre se fixou na minha memória... Antes de mais, porque pela
primeira vez viajava num combóio; depois, porque era igualmente a primeira
vez que calçava uns sapatos e por indumentária tinha um fato... E,
finalmente, porque me encaminhava para um destino desconhecido, um mundo
totalmente novo, que tanto alimentava o meu imaginário quanto veramente me
angustiava...
Mas angústia como aquela que experimentei, quando o combóio chegou à Régua
e meu pai foi beber um copo de água sem se aperceber que o combóio
arrancava sem esperar por ele, ah!, essa, viverá para sempre comigo!
Sentir a composição em movimento e ver o meu pai, cada vez mais distante,
num esforço inaudito na tentativa de correr e a alcançar – ele era
deficiente motor em consequência de um ataque de meningite – a par da
minha própria angústia, sem saber o que fazer e a quem me dirigir, ainda
hoje é um dos meus maiores pesadelos...
O meu pai, porém, era um homem extraordinário: mais do que culto para o
meio, até ao ponto de assinar o jornal “O Primeiro de Janeiro”, que
recebia todos os dias, exercendo a profissão de alfaiate, tinha-nos
educado a todos, a mim e aos meus irmãos, cuidando de tudo; do asseio, da
alimentação, das roupas, da educação, etc., apesar de deficiente, com
sérios problemas de locomoção.
Nunca nos faltou nada, mesmo no tempo da guerra, com a alimentação
racionada e dificuldades gerais de toda a ordem, entre as quais a de ter
sido acusado de sublevar a população local, em razão de um imposto que até
então era pago em géneros e depois passou a ser em dinheiro! – o que
motivou uma penhora decretada pelas finanças, reforçada pela presença da
Guarda Republicana, mas que de nada valeu, porque o meu pai não permitiu
que ninguém lhe entrasse em casa, ameaçando de morte o primeiro que o
tentasse...
Marcou-me muito o meu pai! E quero crer, os meus filhos, que também muito
o estimaram...
Pois, na circunstância, dirigiu-se ele ao chefe da estação e narrou o
acontecido. Em consequência, na estação seguinte, abeirou-se de mim um
revisor, que me acompanhou até ao Porto, dizendo-me onde deveria esperar
pela sua vinda no combóio seguinte. Quando este chegou, eu alimentava mais
uma angústia: tinha perdido ou me fora roubado o seu chapéu! E quando ao
vê-lo a desembarcar, preocupadíssimo, lhe dei conta do acontecido, ele,
num forte abraço de afecto, me disse: “Ó meu filho! Deixa lá o chapéu...
Compra-se outro!”
Como está bem de ver, jamais hei-de esquecer as vivências desse dia...
Voltando ao anúncio: quando cheguei à Liv. Académica, era um entre a mais
de meia dúzia dos moços que se perfilavam à porta, à espera de serem
recebidos. Fui o último. E logo tive a sentença: se quiser pode já
ficar!...
Se me perguntarem a razão pela qual fui escolhido, apenas encontro uma
explicação: o Senhor Guedes da Silva escolheu-me porque se apercebeu da
minha inocência e ingenuidade e preferiu, digamos, a matéria bruta capaz
de ser amoldada, a um tipo de esperteza viciada...
O Senhor Guedes da Silva era uma pessoa extraordinária! Não possuía mais
do que a instrução primária, mas, a seu modo e na profissão, era uma
competência e muito bem relacionado. Ensinou-me tudo quanto sabia! E
permitiu que me matriculasse na Escola Oliveira Martins, autorizando-me a
abandonar o serviço a tempo de chegar às aulas, chegando mesmo a
preocupar-se mais com as horas do que eu!
Mantive-me na Académica até ir para a tropa. Quando regressei da vida
militar, tive um convite inesperado: o Senhor António Fernandes Oliveira,
que ao tempo poderíamos considerar um capitalista, comprou ou herdou uma
biblioteca e decidiu abrir uma livraria, a Lusa, na rua de Cedofeita. E
como nada sabia deste negócio, ofereceu-me sociedade! Claro, era uma coisa
simbólica, mas suficientemente atractiva para me fazer pensar...
Expus o caso ao Senhor Guedes da Silva, que me incentivou a aceitar, dado
não me poder oferecer nada de parecido, tanto mais que, nessa altura, ele
contava com a colaboração do genro.
Permaneci na Liv. Lusa mais ou menos quatro anos. Aí passei a editar,
mensalmente, o que se configurava como um boletim ou lista de livros para
venda, impresso numa velha máquina manual de Stencil, roda que roda, folha
após folha... Não tinha razões de queixa, senão o facto do Senhor António
Fernandes Oliveira gostar pouco de comprar: para ele, havia obras mais do
que suficientes nas prateleiras, não se justificando um investimento
contínuo na aquisição de novos títulos...
Neste entretanto, um vizinho da Liv. Académica, encontrou-me ou fez-se
encontrado comigo, e lá me foi dando novidades, nomeadamente sobre a
doença irreversível do genro do Senhor Guedes da Silva, que veio a falecer
com um cancro cerebral, e das dificuldades que este sentia em permanecer
sozinho à frente da mesma. E mais adiantou: será que eu estaria disponível
para me encontrar com ele? Eu disse que sim, encontrámo-nos... e regressei
à Académica!
A primeira consequência que daqui resultou, foi a compra de uma máquina
automática de impressão para a feitura de boletins, coisa que deu um
acréscimo extraordinário às vendas, tal como já ocorrera na Lusa, e que me
obrigou a pesquisas bibliográficas de toda a natureza, dado que cada
título anunciado possuía a sua caracterização própria.
Fiz-me, pois, a registar “entradas” para o Boletim que editávamos e no
qual, naturalmente, tinha forte participação o Senhor Guedes da Silva, que
era um homem muito sabedor e experiente.
As vendas, nas quais tinha comparticipação, correram tão bem que, dez anos
depois, passei a sócio de pleno direito da Livraria.
Com a morte do Senhor Guedes da Silva, em Janeiro de 1972, a sociedade
continuou com a participação da Senhora D. Cacilda por mais alguns anos,
até que esta me fez a doação do estabelecimento e do negócio...
E para aqui estou...
Eis o perfil de um homem que
iniciou a sua profissão da forma mais humilde que se possa imaginar e que
hoje não só preside ao destino da casa que o aceitou como um simples moço
de recados, como é soberanamente reconhecido como um erudito do ramo, o
que equivale a dizer que poucos como ele estarão habilitados a expender
opinião sobre qualquer peça bibliográfica, do século XV à actualidade e,
concomitantemente, a exibir o conhecimento aprofundado sobre os grandes
vultos da literatura, da etnografia e historiografia portuguesas,
independentemente do mesmo grau de saber sobre outros sectores mais
genéricos. E porque assim é, não admira que, há alguns anos atrás, em
razão duma exigência contabilística governativa, várias instituições na
posse de valiosos acervos documentais tivessem a ele recorrido para as
respectivas avaliações. Assim o Arquivo Histórico do Porto, a Real
Companhia Velha e a Biblioteca Municipal de Mirandela, que recebeu o
espólio de Sarmento Pimentel. E que, por estas e outras razões, muito
justamente, tenha sido distinguido em 1992, em parceria com o livreiro
Manuel Ferreira, com a Comenda de Mérito, pelo então Presidente da
República, Dr. Mário Soares! Solicitações e distinções desta natureza, se
por um lado carreiam um reconhecimento e consagração, por outro, dão bem a
medida do esforço de aprendizagem e de saber que implicaram para quem, em
rigor, as adquiriu por experiência e vontade própria.
Obviamente que tais predicados jamais seriam possíveis de
alcançar, acaso Nuno Canavez não fosse um
apaixonado da sua profissão, porventura, mesmo, um
criador em face daquilo que
superiormente o motiva. E isto talvez explique o motivo pelo qual não há
evento político ou literário de vulto, por ocasião de aniversário, que não
colha a devida consagração nas montras da Livraria Académica, as mais das
vezes em atitude singular e solitária
em relação às instituições que deveriam ter esse cuidado, enquanto
depositárias da memória e do espírito desses eventos.
Chegado aqui, importa dizer que não estou a escrever estas notas com o
objectivo disfarçado de traçar o panegírico do Nuno Canavez, embora elas
se prestem à confusão. O caso é este: não é possível dar notícia de
personalidades que se distinguem pelo modo superior como se afirmam
naquilo que fazem, senão mesmo pelo contributo que transportam e legam aos
vindouros, sem, de algum modo, deixar de inflectir para o elogio. Ora, o
que acontece é que Nuno Canavez, para além da competência que se lhe
reconhece no âmbito da actividade comercial que exerce, é autor, quero
crer, da melhor e mais completa bibliografia sobre as regiões transmontana
e duriense, conforme se pode avaliar pelos títulos que editou às suas
custas e de interessante apresentação gráfica. A saber:
365 Livros Sobre Trás-os-Montes e Alto Douro
(1988);
Mais 145 Sobre Trás-os-Montes e Alto Douro
(1990);
Mais 100 Livros.........................................
(1992);
Subsídios Para uma Bibliografia Sobre Trás-os-Montes e
Alto Douro (1994);
Subsídios Para uma Bibliografia Sobre Trás-os-Montes e
Alto Douro (1998);
Novos Subsídios para uma Bibliografia Sobre Trás-os-Montes
e Alto Douro (1998).
É obra! É obra cuidada e sem igual, minuciosamente
anotada, descrevendo mais de 6000 espécies bibliográficas, considerando,
desde já, o novo volume em impressão, para mais ilustrada com dezenas de
postais antigos, nos quais se dão a conhecer facetas de vida rural dos
habitantes dos vários concelhos em tempo antigo, a par da monumentalidade
arquitectónica das regiões que trata.
Cada um avaliará este inventário como quiser e entender, mas, por mim,
honestamente o digo: não conheço nada que se lhe compare e forneça um tal
acervo aos estudiosos. E tão-pouco quem, ao longo de quase vinte anos, se
tenha dedicado a uma tarefa com esta envergadura e de forma tão
desinteressada, angariando, laboriosa e amorosamente, toda a sorte de
peças e de registos monográficos e literários, muitos dos quais o Nuno
Canavez doou à Biblioteca de Mirandela. E tantos eles são, cerca de 2500
títulos!, que esta instituição se pode ufanar de possuir uma das maiores
bibliotecas regionais do país, razão mais do que suficiente para ao núcleo
de tal espólio ter dado o nome do doador.
O que isto representa de dedicação, pesquisa e labor esforçado, só se
explica pelo sentimento da paixão: paixão de conhecimento e paixão pela
região onde nasceu. Decerto valores antigos, hoje infelizmente em desuso,
mas que continuam a valer para os que os ostentam como uma espécie de
determinismo biológico, de apego às origens do ser.
Como todos os transmontanos, o Nuno Canavez ama a sua terra, colocando-a
acima de todas as coisas. E como todos os demais, pelo menos os que mais
intimamente conheço no geral, é uma personalidade imprevisível e
intempestiva, situando-se nos extremos: ora é capaz de despir a camisa
para servir um pobre ou um amigo, como de oferecer um ou mais livros a um
estudante ou estudioso que deles necessite e não possua dinheiro para os
comprar; tal como é capaz de levar tudo raso à sua frente, a pretexto de
quase nada, não cuidando de aparências ou interesses...
Voltando atrás: creio que os meus primeiros encontros com o Nuno Canavez
datam da sua presença na Lusa, posto não mais reflectissem do que o trato
entre um comprador (modesto) e um vendedor de livros. E assim continuaram
depois na Académica e nas feiras do livro, primeiro na Praça da Liberdade,
a seguir junto à Câmara do Porto e depois na Rotunda da Boavista, que foi
o último local onde a Livraria Académica esteve presente. Com isto a
confiança cresceu entre nós. E depois a amizade, a partir do momento em
que passámos a ser companheiros
fundadores do Rotary Clube do Porto-Oeste, à distância já de vinte e cinco
anos!
Ao longo de toda esta vivência, celebrei com ele muitas parcerias, colhi
muitos ensinamentos e adquiri, naturalmente, muitas obras do seu comércio.
E hoje, praticamente, não passo uma manhã sem me deslocar à Académica para
falar com o Nuno, devidamente assessorado pela Fátima e Amélia, seus
complementos directos, adquirindo, por vezes, mais algumas obras, para
desespero da minha mulher, que vê a casa cada vez com mais livros: uns que
chegam pelo correio de todos os lados e quase todos os dias, e outros que
eu transporto por via destas e outras visitas... – o que não impede,
todavia, que ela me iguale na admiração e na amizade que dedico ao Nuno
Canavez.
Fevereiro 2008

RUI LAGE
Académica, aos Mártires da Liberdade
para Nuno Canavez
Conheço-as dos prados, as aves,
ou de ouvi-las nas copas mais altas,
ou nas margens deleitosas dos rios
de Murça, Valpaços, Mirandela,
aves da infância que suponho
as mesmas de Nuno Canavez
em Abambres, Vale de Juncal.
Não há nisto bucolismo de espécie alguma
ou arcádico acento, apenas,
já degustado pelos ratos,
um compêndio de História Natural
com rotas migratórias, nomes em latim
da res natura discordantes,
estranhos à camponesa língua
e dos ramos dissonantes,
encadernado a verde escuro
exemplar um pouco cansado
de anónimas flores
entre folhas prensadas,
tábuas do reino animal
e louva-a-deus à escala
decalcado em papel vegetal.
De todos os livros que me coleccionam
é esse o mais belo:
The Wood’s Popular History
do reverendo J. G. Wood,
impresso na Motley Press,
Eldon Street, 18,
por George Routledge & Filhos,
Londres, 1904.
Na montra semelhava um livro de horas,
códice arborícola, incunábulo silvestre,
separata florestal que o pobre tolo
Pascoaes tivesse acaso folheado
com maronês desvelo sentado
ou Torga na ronda da noite
rendendo fráguas e bichos
às portas do Reino da Morte.

RUI LAGE
Um Alcaide na Académica
Não passava de mero apêndice bibliófilo de meu pai quando
pela primeira vez transpus as finas e estreitíssimas portas de vidro da
Académica, em cujo rés-do-chão despertei para a profusão edénica de
lombadas e encadernações ali reinantes. Para o adolescente que eu era
então, a figura de Nuno Canavez não podia deixar de inspirar um misto de
retraimento e curiosidade. A sua voz é afinal das mais pródigas em
decibéis que conheço – boa seria para vate nos cumes da Arrábida ou nos
alcantis de Lorelei, no Reno. Só muito mais tarde me aventurei numa
primeira expedição solitária à Académica, esperando que fosse aquela
figura queirosiana e temperamental a estar de guarda à sala de entrada e
não metido lá para dentro a bulir com alfarrábios. Haviam passado dez anos
ou mais sobre a primeira visita, mas poucos meses foram precisos para que
me apercebesse da importância do exemplo cultural e cívico de Nuno
Canavez. Comecei então a apreciar-lhe o discurso, num português
irrepreensível, truculento e mordaz, parecendo zangado quando só estaria
desassombrado e parecendo resignado quando por dentro lhe ia, adivinho,
uma grande zanga com a ignorância nativa e universal. Também lhe descobri
nessa altura o sentido de humor, difícil, porque atrelado à tal
truculência e ao abrupto do vozeirão áspero. Não o humor que deriva do
absurdo, do burlesco ou do pândego mas – de todos o mais exigente – o que
nasce da ironia, suprema forma de inteligência, obrigando face aos outros
e a si mesmo um acordo tácito entre violência e ternura.
Nuno Canavez possui o sentido do poético. Certa vez ouvi-o dizer, quando
perguntei por um volume de Pascoaes, que o poeta de Amarante “fazia as
pedras cantar”, ou, porque não me lembro agora das palavras exactas nem
isso tem importância, que “até as pedras cantavam e eram coisas vivas” nos
livros do “pobre tolo”. Foi porém quando me apercebi das suas raízes
transmontanas – firmes, mergulhando porventura tão fundo quanto a hulha do
Carbonífero – que uma genuína empatia nasceu. Embora nascido no Porto as
minhas origens são transmontanas: concelho de Valpaços pelo lado do pai e
concelho de Murça pelo da mãe, ambos filhos de lavradores. Certo dia, já
munido dos seus três preciosos volumes de bibliografia sobre
Trás-os-Montes, fiz-me admitir no saguão do primeiro andar em busca de
monografias sobre a Terra Quente (a tal dos três meses de Inferno e nove
de Inverno). Cedo caí por terra ante as centenas ou milhares de volumes
que acusavam a minha ignorância sobre gentes e lugares que tanto amo.
Há tempos recebeu-me assim no seu baluarte: “este nosso amigo”, dizia,
fazendo-me travar conhecimento com outro ilustre transmontano, “vem cá de
vez em quando buscar uns livros, quando junta umas massas”. Melhor que ele
não saberia dizê-lo. Da última vez que me desloquei à Académica, em busca
da “Poesia II ” de Jorge de Sena, topei com um livro, exemplar um pouco
cansado – como tão poeticamente dizem os livreiros antiquários – do tão
injustamente esquecido poeta flaviense Eduardo Guerra Carneiro. À menção
da cidade de Chaves, de onde o autor era originário, tal como o pai Edgar
Carneiro (também ele poeta), e após um exame brevíssimo do pequeno livro
intitulado “Algumas Palavras”, ouvi de Nuno Canavez uma forma verbal que
já outras vezes lhe ouvira, dirigida a mim e a outros: “ofereço-lho”. Pelo
que da sua generosidade estamos conversados. Da sua sabedoria contarei um
pequeno episódio. No Natal de 2006 fiz uma pequena diligência à Académica
em busca de uma prenda para uma tia-avó – transmontana de 86 anos – que
recordava, da sua juventude, a leitura apaixonada dos romances de um tal
de Alcaide. Alcaide? Nome competente para antigo governador de castelo,
autarca espanhol, obscuro poeta moçárabe, comentador medievo de
Aristóteles ou até corruptela de alguma organização terrorista islâmica,
mas Alcaide, romancista? Não tardou até que Canavez produzisse a sentença:
“Hall Caine! A sua tia devia estar a pensar no Hall Caine!”. E de Hall
Caine se tratava, de facto: do outrora famoso autor de romances de alcance
popular, porventura melhor escritos e articulados que muitos dos de
alcance erudito que hoje nos impingem. Não me deixaria mentir o Germano
Silva, outro tesouro portuense que por ali vou encontrando e que foi
testemunha do caso. Para mim, portanto, Hall Caine será sempre Alcaide,
graças a este pequeno incidente, e Nuno Canavez andará sempre na minha
memória associado à minha velhinha tia-avó Maria do Carmo, que não poderá
durar muitos mais anos, apesar de nascida na aldeia de Soutelinho do
Mezio, Vale de Vila Pouca de Aguiar. Mas enquanto dura, lê: vejo-a daqui
mesmo, aproveitando o sol de Fevereiro, debruçada sobre a bela
encadernação de “O Filho Pródigo”. Do Alcaide.

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